Estou neste momento estudando na faculdade acerca de poder, verdade e história. E fiquei muito impactada com todo esse estudo, que me fez ficar pensando muitos pensamentos, especialmente, correlacionado com o Caminho da Deusa.
Pensando em poder e verdade, e no quanto, dizer a verdade é um poder. Ter o poder de defender o que se pensa como verdadeiro é um poder, incrivelmente poderoso. E ao longo dessa nossa história patriarcal, aqueles que tiveram o poder de falar a verdade e tiveram poder de verdade, foram os homens.
Eles criaram verdades, pois detinham o poder de enunciá-las.
Muitas vezes, acreditamos que o poder se mantém apenas por repressão, opressão ou imposição, quando na verdade, o que faz com que o poder mantenha-se e seja amplamente aceito, é que ele produz coisas e discursos, constrói narrativas, induz ao prazer, constrói formas de saber. O poder é uma rede de produção que atravessa todo o corpo social e também simbólico. E aqui está seu maior poder.
Já parou para pensar que as supostas verdades que nos foram apresentadas e as verdades que nos foram ditas serem verdadeiras, foram as verdades daqueles que detinham poder e que este poder era masculino?
Essa reflexão sobre poder, verdade e história, vem de dois filósofos: Nietzsche e Foucault. O que por si só, reafirma o que acabei de dizer. Afinal, mesmo aqueles que vem questionar ainda são homens, porque ainda são eles que detém o poder - de criar verdades e de questionar verdades.
A fala já pressupõe uma autorização pelo poder. Apenas quem está autorizado a falar é quem tem o poder. Isso, pressupõe também, que há aqueles que não tiveram e ainda não tem poder e por isso, não estão autorizados a falar.
O subalternizado é aquele que não pode falar, enunciar ou se assim o faz, é muito desacreditado ou precisa de muito esforço para se impor, pois sua fala será questionada, criticada e muito pouco validada, visto que não detém poder. Ainda lutam pelo poder para falar sua verdade, batendo de frente com essa verdade do todo, que não é uma verdade total, mas sim, resultado de discursos que atendem a discursos específicos e vinculados a estruturas de poder, que obviamente sustentam e mantém o patriarcado.
Nietzsche inclusive no Séc. XIX apresenta sua proposta de uma filosofia antidogmática, para além do bem e mal, mostrando que são categorias formuladas pelo poder ao longo da história dizendo-nos o que era bom e o que era mal. Considerando isso, podemos pensar que em um determinado (ou vários) momento da história, as deusas e deuses foram considerados todo o mal e o deus único, todo o bem.
Sendo assim, dizer a verdade, ou convencer a coletividade de que se está dizendo a verdade, é fundamentalmente um exercício do poder. A verdade existe porque existe um regime de poder que a estrutura.
Assim, como ele também nos aponta que a verdade não é um dado substancial material, mas sim, a verdade faz parte da própria atuação do poder. Por isso, o que era verdade em determinada época, pode deixar de ser - a verdade atende ao poder e existe para a manutenção do poder. É um exercício e prática de dominação.
Dando continuidade ao pensamento sobre poder, Foucault, no Séc. XX, aponta que “O importante é que a verdade não existe fora do poder ou sem o poder. A verdade é deste mundo, é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de “verdade”, sua política “geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros e falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade, o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.” (FOUCAULT, 2006, p. 12)
Agora, peguemos tudo isso, que foi dito sobre poder e verdade, por Nietzsche e Foucault, e pensemos sobre nós mulheres e as verdades que foram ditas sobre nós, e pensemos sobre as verdades que foram ditas sobre as concepções religiosas monoteístas e a demonização de todas as religiosidades que foram chamadas por eles de pagãs e nós, fomos chamadas por eles de bruxas.
Entre tantas outras verdades ditas por eles, para nos manter sobre dominação e sem voz. “Fazer a transição do silêncio à fala é, para o oprimido, o colonizado, o explorado, e para aqueles que se levantam e lutam lado a lado, um gesto de desafio que cura, que possibilita uma vida novo e um novo conhecimento.” (HOOKS, 2019, p. 99)
Quando eu penso nas deusas, eu penso em VOZES. Que foram silenciadas historicamente (porque grande parte das histórias contadas sobre elas foram alteradas e manipuladas para servir as agendas de poder) e também, em todos os demais níveis - elas foram silenciadas em nossas mentes, coração, corpo, relações e em tantos outros níveis e áreas das nossas vidas.
Porém, ela nunca poderia ter sido silenciada totalmente. Sua voz, por deveres fracas em alguns momentos, sempre esteve lá, falando conosco através do campo simbólico e espiritual e através da natureza, assim, como também, através de outras mulheres que se rebelaram e escolheram seguir o caminho da deusa.
Que em alguns momentos históricos foi chamado de bruxaria, histeria ou superstição.
O que importa agora, é que nós precisamos ouvir as VOZES DELAS, para que elas nos contém as verdades delas a partir de suas próprias vozes e campos de experiência. Ao fazer isso, estaremos resgatando o nosso poder que vem a partir da voz delas. Lembre-se do que eu disse lá em cima: A fala já pressupõe uma autorização pelo poder. Apenas quem está autorizado a falar é quem tem o poder.
Ao ouvirmos as deusas, estamos autorizando elas a falar, e assim, estamos resgatando nosso poder, e é esse poder interno que advém em grande parte das deusas, que iremos receber essa autorização delas para falar e assim, erguer nossas vozes contras as verdades mentirosas que foram e seguem sendo ditas sobre nós.
Amo a metáfora que a Jean Shinoda traz, dizendo que vamos criar assim um conselho dentro de nós, ao redor do fogo centralizador e revelador da verdade de Héstia, onde todas as deusas terão restituídos seu lugar de fala.
Lugar de fala para nós é autorização de poder - é colocar a coroa de volta em nossas cabeças. Não para mandar em alguém. Não para constituir um matriarcado, mas sim, para estamos em uma posição de protagonismo sobre nossas próprias vidas, narrativas e histórias.
Feita por nossas vozes em conjunto e para nós. Não mais como a outra e não mais como uma mera coadjuvante que está lá para ser troféu do herói/rei todo poderoso.
A deusas estão o tempo todo falando dentro de nós e através de nós, só precisamos dar a oportunidade de verdadeiramente ouvi-las. Eu sei que estamos atravessadas das verdades que foram ditas sobre elas, que acabaram poluindo e intoxicando o nosso entendimento sobre o que elas de fato significam.
Carregamos preconceitos, ojerizas, medos, desconfianças, restrições, entre tantas máculas e feridas que foram infligidas na preciosa relação que um dia nossas ancestrais tiveram com a deusa. Mas, tudo isso pode ser reparado quando e durante o processo de reaproximação da gente com a deusa e da deusa com cada uma de nós.
Cada vez que venho falar de deusa aqui, é um convite e um passo adiante que damos em direção a elas e sendo assim, em direção a nós mesmas. Para recuperarmos nosso poder. Não um poder que queremos ter sobre os homens, mas um poder interno que queremos ter sobre nós mesmas.
Nosso poder.
Nossa voz.
Nossa história.
Nossas vidas.
É uma reapropriação de tudo aquilo que nos tiraram e que é nosso de direito. Há um mundo imenso que desconhecemos. E só iremos conhecê-lo de verdade, quando formos ouvir sobre ele diretamente das deusas.
Ouvir a voz de cada deusa não é um mar de rosas.
Muitas delas estão em cativeiro há tempos demais.
Muitas delas tem muita dor e vamos precisar ser fortes para ouvir suas histórias horripilantes, enquanto choramos junto com ela.
Muitas delas tem muita mais muita sombra, porque foram revestidas de projeções de tudo que foi recalcado e excluído, e ela vai precisar colocar isso tudo para fora, e vamos precisar ser fortes para atravessar essas trevas com elas, sem deixar a luz se apagar enquanto fazemos.
Muitas delas já passaram pelo processo de autorrecuperarão e estão muito bem, obrigada!
São muitas camadas e vamos ter que ter paciência, amorosidade e afetuosidade para acolher tudo isso.
Luz e sombra.
Rosas e espinhos.
Para verdadeiramente conhecê-las.
Mas, eu digo com certeza, não há nada mais incrível do que tê-las de volta em nossas vidas e restabelecer um dos relacionamentos mais importantes que poderíamos ter, que é com as deusas e percorrer o caminho das deusas, que é nosso LEGADO POR DIREITO.
Que assim seja,
Um forte abraço.
Referências:
FOUCAULT, M. A microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.